15 de julho de 2014

Entre (!) a pele e o peito

    No cobertor, a cara gigante de um leão, lembrando que o quarto é uma selva onde nos refugiamos. Deveríamos limitar a entrega àquele espaço de penumbra improvisada; somente ali permitir o escândalo delicioso das frases; e naquela cama adormecer todos os arrepios. Deveríamos, inclusive, ter assinado algum termo constando que do outro lado da porta todo e qualquer desejo e/ou interesse não moveria coisa alguma em nós. Mas eu sempre esqueço as burocracias, e agora estou nessa de tentar enxergar as fronteiras entre a pele e o peito, enquanto ela me pergunta, com ares de pirraça, onde moram os limites. Eu deveria confessar que a aparente racionalidade, bem no fundo de mim, se desfaz no momento exato da pergunta.

    Pensava nisso sentada no sofá da casa; com as pernas esticadas na mesa de centro, de pedra e de ferro; passando os olhos na pequena estante atrás da cortina à minha frente, nas almofadas da poltrona, no abajur enorme, nos porta retratos que ainda não decorei... Tão dentro de mim, pensava também que a tal liberdade sagitariana é latente, porém, possui tanta força que acaba me prendendo do lado de fora das coisas. A ideia de pertencimento tem me espantado, enquanto tudo que se assemelha ao céu intocável continua me atraindo; mas isso é tão inconsciente que eu ainda cultivo certo estilo romanesco. Fico embasbacada quando ela me fala de panelas, paredes e rendas! Porém, há o susto dessa sensação de conhecer um segredo que ainda não sei como contar-lhe, embora ela pareça ser tão conhecedora de segredos nas horas em que me oferece o céu sem fazer esforço para ir busca-lo. Ah, se o céu fosse o limite!
    O silêncio dos meus devaneios foi interrompido quando ela começou a cantarolar uma música enquanto se maquiava entre o espelho da sala e o do banheiro, numa agitação muito peculiar. Eu podia prever que erraria a letra da música ou trocaria alguma palavra, e assim foi. Contive o riso para que não me ouvisse.  A mulher fera, quando distraída de suas intenções de caça, traz consigo a graça de uma menina.
Com graça de menina, ela pinta os lábios a centímetros de mim; faz o movimento clássico de espalhar a cor, aproxima o rosto devagar, sorrindo de canto, olhos nos meus olhos, tácitos... Espera que eu desvie o olhar para o rosa da boca, beija a ponta do meu nariz e sai, rindo.
   A travessura só se desfaz quando os olhares se fixam, como se perguntassem pelo próximo passo, como se outros passos fossem necessários...  Aonde eu posso ir, se tenho, aqui, a princesa em meu colo enquanto a corte inteira busca por ela, tentando achar algum rastro de olhar perdido? Por que partir, se é aqui que eu posso ser o motivo do desalinho desses cabelos-fios-de-seda-dourados que escorregam das minhas mãos? Se as ruas são frias e o meu corpo arde; se o mundo está em guerra e esse carinho é uma porção de paz; se meu peito inabitável ambiciona manhãs, tardes e noites; se meus lábios se enamoraram das sardas quase invisíveis desse rosto... Aonde!?
    Os detalhes malandros passam pela fechadura da porta do quarto, cheios de perguntas e riscos atados às suas colas... Eu devia sair correndo, mas, na seleção natural sou presa e poeta. Quero mais é que ela me tenha entre os dentes e que esse abraço dure o tempo que os relógios não podem marcar.

7 de julho de 2014

Travessia


    Eu queria mesmo saber a quem caberá o silêncio se ele, de repente, chegar. Até agora, o silêncio entre nós durou apenas alguns passos e o tempo de eu ler três letras em teus lábios: vem!  Pronto, barulho!
     Mesmo quando calamos nossas bocas, ainda existe estardalhaço entre os nós dos nossos braços e pernas. E gargantas. A tua, bem mais sonora, a minha quase contida. Não te deixo ouvir a gritaria que minha quietude faz, para não te assustar, assim, tão cedo.  Eu falo pouco mesmo... E quando verbalizo não me deixas terminar nenhuma das frases complicadas que eu preciso dizer para tentar te explicar a teoria do perigo. Não, eu não faço sentido! Se me beijas com essa fome tamanha eu não tenho nexo, a ponte é outra. E atravessamos rindo (para chegar aonde mesmo?), fazendo a festa que terminaria em algumas horas, ou dias... Uma vez, duas vezes, e depois de perder as contas paramos no meio da ponte, de súbito, e eu ouvi teu coração batendo forte dentro do teu corpo completamente meu. Envolvida com o ritmo perigoso das tuas batidas, te dei a liberdade do meu corpo de pássaro, para alimentares teu instinto de fera.  Mas saciavas os teus sentidos antes da tua fome, lentamente.  Depois de atravessarmos a nós mesmas, não precisamos mais de ponte e nos jogamos dela. Na queda, meu desejo vadio se aninhou no teu peito farto e eu vi o riso assanhado deixar teus lábios. Ao pé do meu ouvido tua boca, falando sério, confessava pecados de arrepiar o corpo inteiro, fazia súplicas e promessas capazes de enlouquecer o mais sensato dos mortais e dava ordens que até deus obedeceria.  
    Ontem, flagrei tuas pupilas enormes, e pensei em te contar que errar o tempero da comida é o primeiro sintoma da paixão. Dilatação das pupilas é o segundo. Como eu mal sei cozinhar e não faço ideia do que acontece com meus olhos em cima de ti,  meu sintoma há de ser esse esquecimento dos dias, esse gosto destemperado que as horas têm tido.
    Agora, repetidas vezes em minha lembrança os fios dos teus cabelos dourados deslizam um a um pelo teu pescoço e caem, em peso, no bordô do lençol. Repetidas vezes minhas mãos sentem o arrepio da tua pele quando respiro em tuas costas, de pintas já decoradas. Repetidas vezes o teu deleite manhoso se derrama nos meus pensamentos, aquecendo o meu sangue. E tua voz insiste que a gente faz poesia sem palavra. E tua boca alucina meu nome.
   

23 de maio de 2014

Bibelô


    O velho narrador sensato e metido a garboso que me acompanha, diz que a dona das duas luas escuras disfarçadas de olhos é personagem de algum romance caótico. Dessas que mantém cativa certa fúria nos cantos obscuros de suas almas, onde ninguém, jamais, será convidado a entrar. No entanto, o eu lírico inconseqüente que vez ou outra me visita, insiste em fazer metáfora poética, dizendo que eu posso escolher ser a mosca presa na teia ou a gota de orvalho que a torna mais bonita quando desliza em seus fios. E eu, mais sensata que este narrador e menos babaca que este eu lírico, desejo, apenas, paz. Não tenho planos de pular outros muros, colecionar impossibilidades ou aceitar o convite e dançar nesse salão imenso. É perigoso que eu pise nos teus pés, corres o risco de que a música pare e o silêncio impere, lento.
    Minhas certezas, nada otimistas, são interrompidas pela voz que resume em carpe diem toda a complexidade de um sim: “Basta ouvir o descompasso das respirações.” Então, se somos instantes, eu sou este entre o cansaço e a surpresa. O narrador inconveniente me segura pelo braço e me atira na cama onde o “descompasso das respirações” atordoa meus ouvidos. Tamanha ausência, meu deus! O eu lírico, afogueado, me pede que repare nos movimentos sinuosos da boca carmim, tão jovem que nem deve saber a que veio. Sem nada dizer, encaro este rosto como um espelho de ontem. É de uma fragilidade assustadora e de uma seriedade catastrófica. Leve como a palavra que a nomeia, verdade, mas bem é sabido o que pode causar o bater das asas de uma borboleta. Pede, com todas as letras, gestos e ânsias, para ser lapidada, sem saber que sobre o peito eu sempre preferi pedra bruta, ainda que me arranhe e me faça sangrar.
    Se isso aqui fosse um conto, o narrador elegante daria um jeito de se autodefender, afastado-se de qualquer sensação rente à pele; se isso aqui fosse um poema, o eu lírico se deteria às luas escuras psicóticas que ela traz no rosto; mas sinto uma vontade ainda tímida de mostrar-lhe o avesso do relógio, que ela diz se arrastar... Uma vontade de que, contrária a paz que eu busco, a madrugada se estenda atemporal, debruçada num balcão.

Sempre fomos casa nova

    Foram dias distintos. Em alguns ela se esquivava das minhas mal pensadas armadilhas e pulava da cama. Vestia uma perna da calça, um tênis, a outra perna da calça, o outro tênis, fazia café para duas e depois me dava um beijo fresco que parecia levar um pedaço meu. Outrora acordávamos e ficávamos enroscadas uma na outra, feito dois bichos em seus movimentos ritualísticos... Até que o sol estivesse quase no meio do céu, como se não houvesse mundo lá fora, como se não houvesse amanhã. Vez ou outra me ocorria um sussurro dizendo que em alguma hora, tardasse ou não, o amanhã chegaria e tomaria para si aquele deleite todo, com a racionalidade e praticidade que falta à paixão. Lembro desses e de outros tantos assaltos, meu corpo se arrepia de excitação e medo.
    Senti medo desde o dia em que eu soube que ela era, justamente, quem eu queria amar. Depois de tantas despedidas, descobri que eu nunca quis que ela fosse a última mulher que partiu, e já não querer a mesma era meu álibi para o desamor, mas sucede que, quando eu menos esperava, ela me apresentava outra. Onde será que ela esconde tantas mulheres, afinal?
    O fato é que todas sempre me escaparam como a água que deixava as minhas mãos depois de tocar o rosto e me fazer acordar, como os pássaros que fogem da minha lente, como a rima que me falta quando eu mais preciso escrever.
    Apesar da vontade de rasgar-lhe a carne moura e resgatar o coração que ela roubou para pôr no lugar do seu, de vidro, eu ficava com as lembranças, ainda vivas por aqui: a risada desafiadora; os quatro cheiros de perfume; o prazer que ela tinha em ser ouvida, ao ler; os ombros mornos de fora, cheios de gotículas que ela não secava direito, quando enrolada na toalha... O gosto da carne com batatas que fazia. Troco um pesar por um prato de carne com batatas!
    Em sua última fuga levava estrelas nos cabelos, que de longe atraíam meus olhos. Ora, o que não esperar de um mulher que ganha dos deuses estrelas para adornar seu penteado!?
Em nossos banhos, inúmeras vezes lavei aqueles cabelos. Molhados, pareciam algas negras envolvendo minhas mãos. Pelas costas dela e pelos seios meus, escorria a espuma cheirosa do xampu que ela usava. É uma das saudades mais sinceras que ela me dá. Não há de existir ritual mais sagrado que este, onde se lava os cabelos de quem se ama. Perdoem-me o lirismo, mas penso, inclusive, que a despedida do amor deveria ser assim, um banho onde um devolve o outro limpo para que o mundo tome conta.

14 de fevereiro de 2014

Deságua!


Chove.
Molha, meu amor, tua garganta seca.
E que o roçar dos corpos assalte tuas ganas inundando teu sexo!
E que as bocas se comam naufragando as palavras!
Chove.
Afoga-te, meu amor, nas ondas do meu peito.
E que este grito líquido derramado em meus dedos faça vibrar teu instinto!
E que escorra desejo a fora os fluidos esfregados na relva das tuas coxas!
Chove.
Adentra, meu amor, e arranha minhas entranhas.
E que tua saliva quente desnorteie os destinos!
E que eu beba do teu gozo e da tua liberdade!
Chove.
Rompe os silêncios das nossas almas,
faz um alarde com teu gemido!

13 de janeiro de 2014

Revoo


    Tu és saudade e eu sou vaidade, me dizia, no último encontro. E dizia da pior maneira, recordo: sem nenhuma palavra. A vaidade dela queimando meus poros, com aquela malícia felina que lhe foi dada na adolescência. Sim, na adolescência, porque sinto que a conheço desde que ela era a guria moura atirada entre os bichos de pelúcia, com as covinhas do sorriso mais acentuadas que nunca e o sorriso mais travesso que nunca e os segredos mais escondidos que nunca e os sonhos mais bonitos que os de hoje. Sinto, também, que a quis a vida toda, desde que eu era a guria que fugia pros matos, que saía pra chuva chutando barro nos guris da vila, louca por tudo que não podia fazer, teimosa e quase livre, salvo o coração que sempre me pôs de joelhos. 
    Acontece que nos encontramos tarde. Da primeira vez eu não a vi, e todo mundo viu, todo mundo comentou, todo mundo quis. Mas meus olhos estavam em paz, até ela decidir, inconscientemente, que paz demais deve ser violada. Ela violentou minha paz e eu deixei, uma vez, duas vezes... Nas outras vezes fui eu mesma quem pediu. Ela era a chuva proibida pela mãe, ela era o cheiro tentador que o mato tem. Passou por mim feito um vento e arrastou meus olhos com ela, pelos cabelos dela, pelas costas dela que contrastavam uma renda branca, pelo quadril latino dela, pelas pernas ligeiras dela, pelo ar petulante e empinado dela. Mas isso todo mundo já leu, embora ninguém tenha entendido a importância da repetição. Repito pra ver se esqueço, pra gastar a sensação de ser levada, por vontade, vida a fora. Ela ainda era somente uma presença muda, uma sedutora presença muda, até que riu. Mesmo ambiente, uma jogada de cabelos, um olhar disfarçado de acaso e uma risada... Uma risada audaz que eu quis ouvir centenas de vezes, e ouvi, de fato. Ouvi e entendi aquele cantor que dizia que gente apaixonada faz um hino do som da risada da pessoa, ou algo assim. Eu fiz três canções diferentes com a risada dela: uma, tinha dedilhados de violão em uma manhã comum com café fresco; outra, tinha o ritmo marcado de um tango em noites ardentes de Buenos Aires; e a última, possuía a melancolia do adeus de uma música clássica.
    Depois do riso, os olhos dela (os quais repito mais que tudo) decidiram caçar-me, em um jogo perigoso à margem do resto do mundo. Mal sobrevivi. Até ouvi boatos de que outras presas souberam jogar, mas eu... Eu idolatrei aqueles olhos e jurei me vestir de todas as presas possíveis para poder tê-los postos em mim nas madrugadas de uma infinitude. Cometi todos os exageros pensando naqueles olhos, amei-os tanto que quis arrancá-los, como a mais trágica literatura faria. Eram olhos impenetráveis, cheios de armadilhas... Feitos de labaredas para queimar o verde dos meus olhos de mato, especialmente quando olhavam debaixo para cima, maravilhosamente quando ensopados de penumbra, tão nus quanto o corpo rijo.
    Eu a segui pela rua, num impulso. Pelo menos cem batimentos por minuto, mãos suadas, garganta seca. Não lembro o que disse, mas ela riu. Caminhamos juntas, paramos na esquina, e como eu quis que as luzes da rua se apagassem! Se a cena se repetisse hoje, eu saberia que as sensações que senti não devem, em hipótese alguma, ter seguimento, mas também não podem ser paradas, e disso eu desconfiei antes mesmo de tocá-la, afirmando a desconfiança em um abraço. Foi melhor assim, um mergulho insano na vontade incontrolável de tocá-la.
Ela me seguiu, por causa de um beijo mal roubado. Adverti sobre o risco de uma paixão. Adverti rindo, olhando pra baixo, como quem pressente, como quem diz “Olha aqui, tu vais me enlouquecer a vida!”
A gente até parecia cena de filme, pintura de tela, letra de música... Não a culpo por não poder tatear nossa história, porém, queria que ela me parecesse menos real também.
    “Te amando”, respondeu a uma pergunta qualquer que fiz, deitando meu corpo com o dela e calando minhas próximas perguntas. Tinha um gosto de paixão, um cheiro de paixão, um devoramento de paixão, uma exaustão de paixão. E paixão me servia - de pratos cheios e taças fartas de um líquido delicioso - mas comecei a suspeitar que a falta da presença dela nos meus dias pudesse ser mais que “paixão”. Eu podia conversar com ela por horas ininterruptas, em duas ou mais línguas, sobre decoração de ambientes, sobre como animais de estimação são importantes para os filhos, sobre as doenças psicológicas que afetam a humanidade, sobre a educação no país, sobre religiões pagãs, sobre o caos, sobre o amor... Ah! Eu podia ficar em silêncio com ela, me demorando no contraste de nossas cores, na dança de nossas mãos, no frenesi de nossas ganas. Eu podia dormir com ela, e tantas vezes, meu deus, tantas vezes senti falta de somente dormir com ela, de vê-la dormir, de ouvi-la dormir! Eu... que tentei convencê-la de que adormecer com alguém gera a dependência das almas, eu que estava indo tão bem na minha aventura poética! Tanto equívoco! Tanto de mim, sem saber quanto dela era alma, corpo, sentimento. Mas que tolice! Adormeci em camas nas quais minha alma sequer demorou-se!
    Algumas vezes eu fui embora pensando em voltar de uma vez para aqueles beijos, para os sussurros, para o entendimento dos corpos. Outras vezes, fui embora querendo ouvir mais da voz, querendo mais das histórias que me contava, dos resultados das histórias, que andavam pela casa com caras de sono, de brincadeiras, de curiosidade, de “a gente gostou de ti, fica mais”. Suspeito que ela nunca entenda, mas me apresentou mundos novos e complexos com os quais o meu mundo, sem hesitações, quis se fundir. Além da pulsação de nosso encontro atrasado e inevitável, ela deixou-me entrar (pela janela), cuidar, gargalhar, vestir, pentear, ouvir, sentir, morrer, suspirar, ser... Algumas das minhas recordações mais ternas têm cheiro de cabelos frutais e gosto de leite com chocolate.
    Alguém me explica como é que a gente vai embora sem olhar pra trás? Como é que a gente fica perto sem precisar mascarar uma saudade imensa? Como é que a gente levanta depois que o temporal passa? Ainda mais essa gente metida a poeta, com a tremenda aptidão para os dramas e excessos de sensibilidade. Ainda mais eu, que transcendia, sem permissões, sem ter decorado o caminho de volta, com asas frágeis que sonhavam o céu inteiro.  
    Ah, esse destino clandestino que eu contrario! Nunca consegui ir embora sem que alguma coisa minha ficasse. A sorte é que o tempo ainda sabe transformar os quereres, em poesia, que seja.


“Eu não quero o teu corpo
Eu não quero a tua alma,
Eu deixarei intato o teu ser a tua pessoa inviolável
Eu quero apenas uma parte neste prazer
A parte que não te pertence.”


- Joaquim Cardoso

8 de janeiro de 2014

O corpo sempre foge querendo ficar


    Signos de fogo querendo ser incêndio.
    Meus olhos escalaram suas pernas. Saltitaram no azul da
barra do vestido, demoraram na saliência do quadril, dos seios e por um triz não triscaram na curva entre o pescoço e a boca. A boca contendo um riso vaidoso, guardado para outro momento. Incêndio adiado. Ela desafiava os quatro elementos.

    Enquanto fazia rodeios numa espécie de ritual, com os pés descalços pelo chão de madeira da sala, onde eu estava; a música que ela ouvia já me invadira sem piedade, como a fúria do mar que desconheço. E assim, pensando no mar, tive uma leve sensação de afogamento, uma lembrança de alguma onda que levou meus passos e me jogou contra as pedras, lanhando minhas costas. 
“Filhas da deusa vem de águas que passarinho não bebe, menina!” Pressentia ela, como se pudesse ler minhas lembranças, ou as desatenções tão previsíveis disso que eu era, pelo menos nas horas fantasiosas em que ela pedia que eu fosse: uma menina.
“Bebes?” E ria, num deboche afogueado, andando pelo corredor, os cabelos mal prendidos, a nuca despida, os ombros também, o tecido azul balanceando na cintura solta, um passo, outro... 
    
    Deixou-me a sós. Com os violinos e percussões, com a voz daquele homem sussurrando vontades impróprias nos meus ouvidos. O cantor meio homem meio lagarto, com olhos de lagarto, movimentos de lagarto... O ladrão da música que não fiz, cantando as minhas saudades, tão bem metamorfoseadas em esquecimento que eu já começara a acreditar. Morri de sede na imensidão desértica daquela letra e a melodia me matava de um desejo que não sabia decidir entre as ondas violentas que me faltavam, e os desertos antigos de areias sorrateiras, prestes a, também, me afogar.
Que próximos estarão os abismos quando a arte deixa de ser deleite para arranhar a realidade sem nenhuma sutileza...

    Caia a noite. A luz restante adentrava as janelas e refletia nas pernas dela, que luziam lisas e convidativas esticadas no sofá. Depois de me levar dos meus devaneios para seus mundos de amantes sem nome, juntou-se aos violinos e aos meus abismos. Ouvia-me com os olhos, falava-me com os olhos, só não sorria com os olhos... Talvez soubesse amar com eles.
Repentinamente, não sei se contra minha vontade ou a favor do apreço que tenho pelos riscos, fui atraída por outros olhos. Lembrei como estes, endiabrados, souberam sorrir e amar e enlouquecer e assombrar. Lembrei da minha falta de garbo ao render-me àqueles olhares. Presa fácil, entregue, imersa. Concluí, ali, que alguns olhos não deixam escolha. Metem-se nas entranhas, queimando e extaseando os sentidos arrebatadoramente.
Voltei de meus assombros quando a mão dela, exata e quente, tocou meu braço. Voltei para as suas saliências e para os rumos libertinos pelos quais o homem lagarto e o cair da noite nos guiavam.
Não sei como se tece o desejo, mas ele parece uma teia simétrica da qual não se consegue sair. E que urgência causa!


    Ainda não recordo que movimento - talvez aprendido com o réptil que nos espionava - arrastou seu corpo para tão junto do meu. Uma pausa bruta no nosso assunto que já tinha tão pouco de linguagem verbal. Não tínhamos mais roupas. O vestido deixara o corpo dela como um banho de mar ao contrário. Soltei-lhe os cabelos, ora claros, ora negros. Foram beijos esganados invadindo as bocas e sorvendo os sexos, mãos cobiçosas no calor das coxas e ânsias tremulantes nos ouvidos. 
Rompidas as balizas, o que resta ao desejo? Riam os lábios vaidosos dela, riam os meus lábios confusos. Cantava, ainda, o lagarto. Tanta água em seus desertos!