8 de janeiro de 2014

O corpo sempre foge querendo ficar


    Signos de fogo querendo ser incêndio.
    Meus olhos escalaram suas pernas. Saltitaram no azul da
barra do vestido, demoraram na saliência do quadril, dos seios e por um triz não triscaram na curva entre o pescoço e a boca. A boca contendo um riso vaidoso, guardado para outro momento. Incêndio adiado. Ela desafiava os quatro elementos.

    Enquanto fazia rodeios numa espécie de ritual, com os pés descalços pelo chão de madeira da sala, onde eu estava; a música que ela ouvia já me invadira sem piedade, como a fúria do mar que desconheço. E assim, pensando no mar, tive uma leve sensação de afogamento, uma lembrança de alguma onda que levou meus passos e me jogou contra as pedras, lanhando minhas costas. 
“Filhas da deusa vem de águas que passarinho não bebe, menina!” Pressentia ela, como se pudesse ler minhas lembranças, ou as desatenções tão previsíveis disso que eu era, pelo menos nas horas fantasiosas em que ela pedia que eu fosse: uma menina.
“Bebes?” E ria, num deboche afogueado, andando pelo corredor, os cabelos mal prendidos, a nuca despida, os ombros também, o tecido azul balanceando na cintura solta, um passo, outro... 
    
    Deixou-me a sós. Com os violinos e percussões, com a voz daquele homem sussurrando vontades impróprias nos meus ouvidos. O cantor meio homem meio lagarto, com olhos de lagarto, movimentos de lagarto... O ladrão da música que não fiz, cantando as minhas saudades, tão bem metamorfoseadas em esquecimento que eu já começara a acreditar. Morri de sede na imensidão desértica daquela letra e a melodia me matava de um desejo que não sabia decidir entre as ondas violentas que me faltavam, e os desertos antigos de areias sorrateiras, prestes a, também, me afogar.
Que próximos estarão os abismos quando a arte deixa de ser deleite para arranhar a realidade sem nenhuma sutileza...

    Caia a noite. A luz restante adentrava as janelas e refletia nas pernas dela, que luziam lisas e convidativas esticadas no sofá. Depois de me levar dos meus devaneios para seus mundos de amantes sem nome, juntou-se aos violinos e aos meus abismos. Ouvia-me com os olhos, falava-me com os olhos, só não sorria com os olhos... Talvez soubesse amar com eles.
Repentinamente, não sei se contra minha vontade ou a favor do apreço que tenho pelos riscos, fui atraída por outros olhos. Lembrei como estes, endiabrados, souberam sorrir e amar e enlouquecer e assombrar. Lembrei da minha falta de garbo ao render-me àqueles olhares. Presa fácil, entregue, imersa. Concluí, ali, que alguns olhos não deixam escolha. Metem-se nas entranhas, queimando e extaseando os sentidos arrebatadoramente.
Voltei de meus assombros quando a mão dela, exata e quente, tocou meu braço. Voltei para as suas saliências e para os rumos libertinos pelos quais o homem lagarto e o cair da noite nos guiavam.
Não sei como se tece o desejo, mas ele parece uma teia simétrica da qual não se consegue sair. E que urgência causa!


    Ainda não recordo que movimento - talvez aprendido com o réptil que nos espionava - arrastou seu corpo para tão junto do meu. Uma pausa bruta no nosso assunto que já tinha tão pouco de linguagem verbal. Não tínhamos mais roupas. O vestido deixara o corpo dela como um banho de mar ao contrário. Soltei-lhe os cabelos, ora claros, ora negros. Foram beijos esganados invadindo as bocas e sorvendo os sexos, mãos cobiçosas no calor das coxas e ânsias tremulantes nos ouvidos. 
Rompidas as balizas, o que resta ao desejo? Riam os lábios vaidosos dela, riam os meus lábios confusos. Cantava, ainda, o lagarto. Tanta água em seus desertos!

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