23 de maio de 2014

Bibelô


    O velho narrador sensato e metido a garboso que me acompanha, diz que a dona das duas luas escuras disfarçadas de olhos é personagem de algum romance caótico. Dessas que mantém cativa certa fúria nos cantos obscuros de suas almas, onde ninguém, jamais, será convidado a entrar. No entanto, o eu lírico inconseqüente que vez ou outra me visita, insiste em fazer metáfora poética, dizendo que eu posso escolher ser a mosca presa na teia ou a gota de orvalho que a torna mais bonita quando desliza em seus fios. E eu, mais sensata que este narrador e menos babaca que este eu lírico, desejo, apenas, paz. Não tenho planos de pular outros muros, colecionar impossibilidades ou aceitar o convite e dançar nesse salão imenso. É perigoso que eu pise nos teus pés, corres o risco de que a música pare e o silêncio impere, lento.
    Minhas certezas, nada otimistas, são interrompidas pela voz que resume em carpe diem toda a complexidade de um sim: “Basta ouvir o descompasso das respirações.” Então, se somos instantes, eu sou este entre o cansaço e a surpresa. O narrador inconveniente me segura pelo braço e me atira na cama onde o “descompasso das respirações” atordoa meus ouvidos. Tamanha ausência, meu deus! O eu lírico, afogueado, me pede que repare nos movimentos sinuosos da boca carmim, tão jovem que nem deve saber a que veio. Sem nada dizer, encaro este rosto como um espelho de ontem. É de uma fragilidade assustadora e de uma seriedade catastrófica. Leve como a palavra que a nomeia, verdade, mas bem é sabido o que pode causar o bater das asas de uma borboleta. Pede, com todas as letras, gestos e ânsias, para ser lapidada, sem saber que sobre o peito eu sempre preferi pedra bruta, ainda que me arranhe e me faça sangrar.
    Se isso aqui fosse um conto, o narrador elegante daria um jeito de se autodefender, afastado-se de qualquer sensação rente à pele; se isso aqui fosse um poema, o eu lírico se deteria às luas escuras psicóticas que ela traz no rosto; mas sinto uma vontade ainda tímida de mostrar-lhe o avesso do relógio, que ela diz se arrastar... Uma vontade de que, contrária a paz que eu busco, a madrugada se estenda atemporal, debruçada num balcão.

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