23 de maio de 2014

Sempre fomos casa nova

    Foram dias distintos. Em alguns ela se esquivava das minhas mal pensadas armadilhas e pulava da cama. Vestia uma perna da calça, um tênis, a outra perna da calça, o outro tênis, fazia café para duas e depois me dava um beijo fresco que parecia levar um pedaço meu. Outrora acordávamos e ficávamos enroscadas uma na outra, feito dois bichos em seus movimentos ritualísticos... Até que o sol estivesse quase no meio do céu, como se não houvesse mundo lá fora, como se não houvesse amanhã. Vez ou outra me ocorria um sussurro dizendo que em alguma hora, tardasse ou não, o amanhã chegaria e tomaria para si aquele deleite todo, com a racionalidade e praticidade que falta à paixão. Lembro desses e de outros tantos assaltos, meu corpo se arrepia de excitação e medo.
    Senti medo desde o dia em que eu soube que ela era, justamente, quem eu queria amar. Depois de tantas despedidas, descobri que eu nunca quis que ela fosse a última mulher que partiu, e já não querer a mesma era meu álibi para o desamor, mas sucede que, quando eu menos esperava, ela me apresentava outra. Onde será que ela esconde tantas mulheres, afinal?
    O fato é que todas sempre me escaparam como a água que deixava as minhas mãos depois de tocar o rosto e me fazer acordar, como os pássaros que fogem da minha lente, como a rima que me falta quando eu mais preciso escrever.
    Apesar da vontade de rasgar-lhe a carne moura e resgatar o coração que ela roubou para pôr no lugar do seu, de vidro, eu ficava com as lembranças, ainda vivas por aqui: a risada desafiadora; os quatro cheiros de perfume; o prazer que ela tinha em ser ouvida, ao ler; os ombros mornos de fora, cheios de gotículas que ela não secava direito, quando enrolada na toalha... O gosto da carne com batatas que fazia. Troco um pesar por um prato de carne com batatas!
    Em sua última fuga levava estrelas nos cabelos, que de longe atraíam meus olhos. Ora, o que não esperar de um mulher que ganha dos deuses estrelas para adornar seu penteado!?
Em nossos banhos, inúmeras vezes lavei aqueles cabelos. Molhados, pareciam algas negras envolvendo minhas mãos. Pelas costas dela e pelos seios meus, escorria a espuma cheirosa do xampu que ela usava. É uma das saudades mais sinceras que ela me dá. Não há de existir ritual mais sagrado que este, onde se lava os cabelos de quem se ama. Perdoem-me o lirismo, mas penso, inclusive, que a despedida do amor deveria ser assim, um banho onde um devolve o outro limpo para que o mundo tome conta.

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