(Para ouvir ao som de Narcotango)
Ela sabia que os olhos dos meus versos eram os dela, e
sabia que eu sabia que ela sabia. Sem querer aludir a nenhum escritor em comum,
mas é que sabíamos bastante coisas, para tocar nesses assuntos assim, a sós.
Por isso não falávamos pessoalmente sobre meus poemas, apenas por mensagens,
por olhar, por telepatia, talvez. Mas, enquanto ela derramava o vinho nas
taças, decidiu que o contrato entre nós acabaria ali:
“O verde dos dias,
das horas,
dos olhos,
nos olhos,
verdes.
Teu cabelo,
emaranhado,
tuas mãos,
as palavras,
o pulso,
meus olhos,
vidrados,
verdes.”
“Há tempos que não te leio,
mas lembro sempre desse”, me disse depois de recitar as palavras que eram
minhas, e que de tão antigas quase não reconheci, não fosse o encontro dos
olhos meus com os dela, eternizado naquele poema desajeitado. Há muito eu não
fazia dela palavra, mas, por culpa do contrato desfeito entre nós, ou quem sabe
pelo começo do outono, o impulso de experimentar os caminhos vários que se
insinuavam entre segredo e voz, me agitava mais uma vez. De repente, a
impecabilidade de seu corpo pequeno acomodado na poltrona se tornou verso solto
em minha boca, querendo sair, buscando papel e escape. De repente a saia que
lhe beijava as pernas quando ela caminhava até a cozinha em busca de mais
vinho, era pano de fundo para uma vontade crescente de tirá-la para dançar.
Especulávamos
sobre as peculiaridades do tango, ouvindo o CD trazido da Argentina em sua
última viagem. Jurou que, apesar da paixão pela música, o corpo não lhe
acompanhava. Eu ria, incrédula. Ela largou a taça, ficou de pé, olhando meu
rosto, convidativa. E eu, no exato momento da convocação, já havia esquecido todos
os bailes, todos os passos, e “Mistela” era, de súbito, uma esfinge para meus
ouvidos e movimentos. Mas, com a naturalidade daquele meu narrador sem vergonha
que de vez em quando assume meu lugar, larguei a taça, vazia, levantei e juntei
meu corpo ao dela, sorrindo, em tom de brincadeira. A música silenciava minha disritmia.
Meu verso gritava. Dançávamos, como se experimentássemos a arte pela primeira
vez, desenhando passos naquela melodia, mais doce que a bebida que lhe dava
nome. O sorriso dela, assim, tão perto, mastigava minha compostura, e eu resistia
à regra primeira da dança: olhos nos olhos. Já me rondava a certeza de suas
escancaradas permissões, mas eu resistia. Já sentia a respiração dela passeando
no meu rosto, mas eu resistia. Já não sabia disfarçar a satisfação de ter seus
seios triscando meu corpo, mas continuava resistindo. Como se, assim tão perto,
os olhos fossem o limiar entre a eterna fantasia e a realidade, tão esmagadora
de inspirações. Eu resistia, talvez pela minha incapacidade de ser poeta para
transforma-la em imagem quando o dia amanhecesse. Talvez porque, já tão farta
de amores caretas, pouco levava fé em tantas intenções reveladas naquele começo
de abril.
Caía a noite sobre nós, discretíssima, enquanto reinventávamos tempo
e espaço em uma dança sem rotas. Algum sopro entrou pela fresta da janela, nos
desequilibrando, quando esbarrei meus olhos nos dela. Pronto! Foi como aquelas
manhãs nubladas de inverno, nas quais, como presente, Deus afasta uma nuvem da
outra e um sol tímido se revela aquecendo o corpo devagar. Foi assim, um raio
de sol no meu inverno, aqueles olhos dela. E ela, que é o próprio vento,
levando tudo por diante, sem respirar entre uma frase e outra, se demorou, como
eu nunca pude supor. Vi a pausa do tempo no fundo, do fundo, do fundo daquele
olhar marrom. Meus olhos, verdes vidrados, devem ter lhe confessado ficcionais segredos, os quais eu pensava esconder nas entrelinhas de mim. Ela afastou o
corpo e, de costas, dançou sozinha, sorrindo por cima do ombro. Um ritual
latino. Não era a mesma mulher que eu guardara em versos, era outra, queimando
meus papéis e dançando nas chamas, como minha imaginação jamais poderia prever.
De perto, as palavras eram outras, tudo se explicava sem sofismas. Poemas
silenciados, tangos e vinhos, meu perfume em seus cabelos, suas mãos
traiçoeiras, o incêndio nos meus olhos de mata. De perto, o gosto dela era mais
quente, era mais vivo o dourado de sua cor. Fugimos da métrica e das rimas. Ela
era um tanto de verso que chega revirando tudo, eu era poeta distraído, segurando
seus pulsos, para dar a ela meu ritmo e ser andarilha em sua pele.
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