5 de novembro de 2018

Mistela


(Para ouvir ao som de Narcotango)


      Ela sabia que os olhos dos meus versos eram os dela, e sabia que eu sabia que ela sabia. Sem querer aludir a nenhum escritor em comum, mas é que sabíamos bastante coisas, para tocar nesses assuntos assim, a sós. Por isso não falávamos pessoalmente sobre meus poemas, apenas por mensagens, por olhar, por telepatia, talvez. Mas, enquanto ela derramava o vinho nas taças, decidiu que o contrato entre nós acabaria ali:

“O verde dos dias,
das horas,
dos olhos,
nos olhos,
verdes.
Teu cabelo,
emaranhado,
tuas mãos,
as palavras,
o pulso,
meus olhos,
vidrados,
verdes.”

      “Há tempos que não te leio, mas lembro sempre desse”, me disse depois de recitar as palavras que eram minhas, e que de tão antigas quase não reconheci, não fosse o encontro dos olhos meus com os dela, eternizado naquele poema desajeitado. Há muito eu não fazia dela palavra, mas, por culpa do contrato desfeito entre nós, ou quem sabe pelo começo do outono, o impulso de experimentar os caminhos vários que se insinuavam entre segredo e voz, me agitava mais uma vez. De repente, a impecabilidade de seu corpo pequeno acomodado na poltrona se tornou verso solto em minha boca, querendo sair, buscando papel e escape. De repente a saia que lhe beijava as pernas quando ela caminhava até a cozinha em busca de mais vinho, era pano de fundo para uma vontade crescente de tirá-la para dançar. 
      Especulávamos sobre as peculiaridades do tango, ouvindo o CD trazido da Argentina em sua última viagem. Jurou que, apesar da paixão pela música, o corpo não lhe acompanhava. Eu ria, incrédula. Ela largou a taça, ficou de pé, olhando meu rosto, convidativa. E eu, no exato momento da convocação, já havia esquecido todos os bailes, todos os passos, e “Mistela” era, de súbito, uma esfinge para meus ouvidos e movimentos. Mas, com a naturalidade daquele meu narrador sem vergonha que de vez em quando assume meu lugar, larguei a taça, vazia, levantei e juntei meu corpo ao dela, sorrindo, em tom de brincadeira. A música silenciava minha disritmia. Meu verso gritava. Dançávamos, como se experimentássemos a arte pela primeira vez, desenhando passos naquela melodia, mais doce que a bebida que lhe dava nome. O sorriso dela, assim, tão perto, mastigava minha compostura, e eu resistia à regra primeira da dança: olhos nos olhos. Já me rondava a certeza de suas escancaradas permissões, mas eu resistia. Já sentia a respiração dela passeando no meu rosto, mas eu resistia. Já não sabia disfarçar a satisfação de ter seus seios triscando meu corpo, mas continuava resistindo. Como se, assim tão perto, os olhos fossem o limiar entre a eterna fantasia e a realidade, tão esmagadora de inspirações. Eu resistia, talvez pela minha incapacidade de ser poeta para transforma-la em imagem quando o dia amanhecesse. Talvez porque, já tão farta de amores caretas, pouco levava fé em tantas intenções reveladas naquele começo de abril. 
      Caía a noite sobre nós, discretíssima, enquanto reinventávamos tempo e espaço em uma dança sem rotas. Algum sopro entrou pela fresta da janela, nos desequilibrando, quando esbarrei meus olhos nos dela. Pronto! Foi como aquelas manhãs nubladas de inverno, nas quais, como presente, Deus afasta uma nuvem da outra e um sol tímido se revela aquecendo o corpo devagar. Foi assim, um raio de sol no meu inverno, aqueles olhos dela. E ela, que é o próprio vento, levando tudo por diante, sem respirar entre uma frase e outra, se demorou, como eu nunca pude supor. Vi a pausa do tempo no fundo, do fundo, do fundo daquele olhar marrom. Meus olhos, verdes vidrados, devem ter lhe confessado ficcionais segredos, os quais eu pensava esconder nas entrelinhas de mim. Ela afastou o corpo e, de costas, dançou sozinha, sorrindo por cima do ombro. Um ritual latino. Não era a mesma mulher que eu guardara em versos, era outra, queimando meus papéis e dançando nas chamas, como minha imaginação jamais poderia prever. De perto, as palavras eram outras, tudo se explicava sem sofismas. Poemas silenciados, tangos e vinhos, meu perfume em seus cabelos, suas mãos traiçoeiras, o incêndio nos meus olhos de mata. De perto, o gosto dela era mais quente, era mais vivo o dourado de sua cor. Fugimos da métrica e das rimas. Ela era um tanto de verso que chega revirando tudo, eu era poeta distraído, segurando seus pulsos, para dar a ela meu ritmo e ser andarilha em sua pele.

Ferocidade


Formando furacões famintos, feito fera forjada,
fascinante flor fazia frases febrilmente fatais.
Feitiços formidáveis fomentando flama, fui.

Face a face, friagens fundidas, festa feita...

Fugimos: famigeradas forasteiras.
Fantasiamos: fogoso fidalgo, formosa fêmea.
Fui fato! Fostes fatia?

Francamente, fomos furor fingindo fragilidade!

Fogosas fêmeas formosas!
Finas fendas, fartos fluidos, flamejantes frascos...
Forte! Fere forte!

Feriu...
Faz falta flutuar falsas felicidades?

Giro


Aquela negra silenciava a gente!
Voz de trovão e cor no vestido,
suor na testa, braços e mãos.
Lágrima caindo, pra te emocionar.

Pequena e clara,
eras toda flor.
Mais margarida que onda brava,
nem sabias de olho nenhum
que de canto te espreitava,
querendo te levar.

- Que grande confusão há em ser leigo ao destino!

Foi só esbarrar em ti!
O candombe que te movia me deu um arrepio:
com essa eu não me meto!

Mas quem disse que a gente aguenta?
Naquele resto de noite,
e na delícia do teu sorriso,
já não cabia sensatez.

Noite de ninguém



Ventania me chama,
mas teu corpo febril sugere que eu fique.
Depois de tantos goles e estilhaços pelo chão da sala,
tu descansas
nestes cacos de mim jogados no sofá
e adormeces 
com a mão em meu peito
inquieto.
Que bonitas essas tuas mãos!
E mansas... tão mansas...

Sinais, silêncio ou poesia?
Como eu explico que preciso sair pela porta agora e ser invadida pelas mãos violentas do vento?