10 de outubro de 2016

Sobr (a/e) a falta

  

     Ventava. Do alto, as luzes dos postes, dos carros e dos letreiros, tornavam a ponte gigantesca, e nem aquela cidade era a mesma cidade, nem aqueles amores eram mais meus. Sei lá quem lhes encarava o sorriso, os olhos. Sei lá quem, mais que eu, lhes invadia a vaidade. Ventava. De longe eu ganhava olhares úmidos de cerveja. Retribuí brindando com o ar e entornei o copo sem muita vontade. Um suspiro involuntário me fechou os olhos. Que falta faz um bom amigo por perto! Uma casa pequena, um desapego, um violão. Que falta faz o tempo que se joga fora. Queria tempo pra falar sobre aquelas onças brabas logo ali embaixo, no rio. Sobre não ter nascido onça e ser um dos vulneráveis de coração mastigado. Três vezes mastigado. “Não existe desculpa, a gente se deixa devorar por puro querer.” Me disse uma vez um bom amigo. Ventava. Lancei um olhar saudoso para o carro bordô que passou. Enchi meu copo e voltei a fechar os olhos... Mesmo não sendo dali, ela parecia dona do lugar. Lembrei do cheiro dos móveis velhos de madeira no apartamento, do porta-retratos na estante, do tecido finíssimo dos lençóis na minha pele nas manhãs de quarta, dos criados mudos cheios de livros marcados e rabiscados, dos cabelos curtos desgrenhados, dos seios marcados na  camisa, que lhe ficava enorme, desabotoada, à mesa, às 6:30. Lembrei sua fome e sua pressa. Seu café amargo e seu gozo fácil. “Somos a narrativa que quisermos, porque a verdade também é invenção nossa.” Eu jamais a acompanharia, fora daquelas noites. Ela sonhava por mim, ignorando a minha descrença, a minha risada. Quando ela fosse embora qualquer recaída emocional da minha parte haveria de ser meramente profissional. Sentiria falta de me deixar guiar, das melhores músicas e leituras da minha vida, mas meu lugar era ali. Orgulhosa e otimista, ela foi e eu fiquei. Ventava. As risadas soltas me lembravam de que há tempos eu não ria assim, com vontade, sem motivos e sem consciência. Há tempos a minha alegria fora trocada por um riso qualquer, o qual já não me compõe muito bem. Faz falta abstrair a dureza da realidade. Não convém sair da ilha e olhar de fora dela quando a ilha é o único lugar onde se pode viver. O que salva essa experiência é que, muito raramente e com muita sorte, não se é a única pessoa a sair da ilha. Outro gole. E o que fechou meus olhos foi um cheiro que o vento trouxe, nem tão de longe... Ela era dali, mas era também do mundo. O atraente abismo em seus olhos me arrancou do chão. Ela era dona. Dona de um jeito incomum, dona de tudo que lhe rodeava, dona de mim, dela e de quem me lê. Dona de uma força, vinda não sei de onde, que só era solúvel no calor do meu peito, para a inveja de Deus. Revivi aquelas danças, aqueles voos contrariados, uma, duas vezes. Ela sempre quis amarras, mas eu também tinha asas. Quase iguais. Voamos sem saber pousar. Meu pouso foi, por orgulho, solitário. Agora essas asas pesam nas minhas costas, como se já não fossem parte de mim. A gente se dói por colocar o amanhã nas mãos da vida, essa senhora passiva. A gente se ilude e se dói. “O que pesa nas nossas costas nunca são as asas!” Me disse o mesmo bom amigo. E perguntou para onde eu voaria, se pudesse. Ventava. Outro gole, que desceu lento... Ela era dali. Raiz. De olhos fechados, ouvi sua voz, de tantas juras e indecências. Creio que não foi conscientemente, mas ela brincou de ser outra. E era uma brincadeira tão séria, que eu já não duvidava. Ganhei uma alegria rara. E medos. O maior foi o de perdê-la. Não de vista, não para outro amor, mas perde-la para sempre, nesta vida. Outro medo foi o de perder a mim mesma. Se em outras paixões eu me descobria, nesta eu me questionava, me desconhecia, me doava como quem ama pela última vez. A gente nunca se sabe por inteiro. Aos poucos, em seu corpo santuário, eu pincelava de sofisticação os meus desejos mais crus. Ganhei um impulso novo ao ver suas pupilas dilatarem quando ela disse, quase sem voz, que me amava. Mal segurei aquele olhar! Ando temerosa com as palavras. Elas têm esse poder de umedecer a alma e arranhá-la com a mesma facilidade. Meu bom amigo me dizia que “nós amamos a ideia de amar, não o amor, de fato.” Mas se eu não morrer de amor, não sei de quê mais...  Ventava. Todos os olhares já estavam afogados na cerveja, todas as minhas lembranças já não passavam disso. 

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