Ventava. Do alto, as luzes dos postes, dos carros e
dos letreiros, tornavam a ponte gigantesca, e nem aquela cidade era a mesma
cidade, nem aqueles amores eram mais meus. Sei lá quem lhes encarava o sorriso, os olhos. Sei lá quem,
mais que eu, lhes invadia a vaidade. Ventava. De longe eu ganhava olhares
úmidos de cerveja. Retribuí brindando com o ar e entornei o copo sem muita
vontade. Um suspiro involuntário me fechou os olhos. Que falta faz um bom amigo
por perto! Uma casa pequena, um desapego, um violão. Que falta faz o tempo que
se joga fora. Queria tempo pra falar sobre aquelas onças brabas logo ali
embaixo, no rio. Sobre não ter nascido onça e ser um dos vulneráveis de coração
mastigado. Três vezes mastigado. “Não existe desculpa, a gente se deixa devorar
por puro querer.” Me disse uma vez um bom amigo. Ventava. Lancei um olhar
saudoso para o carro bordô que passou. Enchi meu copo e voltei a fechar os
olhos... Mesmo não sendo dali, ela parecia dona do lugar. Lembrei do cheiro dos
móveis velhos de madeira no apartamento, do porta-retratos na estante, do
tecido finíssimo dos lençóis na minha pele nas manhãs de quarta, dos criados
mudos cheios de livros marcados e rabiscados, dos cabelos curtos desgrenhados, dos
seios marcados na camisa, que lhe ficava
enorme, desabotoada, à mesa, às 6:30. Lembrei sua fome e sua pressa. Seu café
amargo e seu gozo fácil. “Somos a narrativa que quisermos, porque a verdade também
é invenção nossa.” Eu jamais a acompanharia, fora daquelas noites. Ela sonhava
por mim, ignorando a minha descrença, a minha risada. Quando ela
fosse embora qualquer recaída emocional da minha parte haveria de ser meramente
profissional. Sentiria falta de me deixar guiar, das melhores músicas e
leituras da minha vida, mas meu lugar era ali. Orgulhosa e otimista, ela foi e
eu fiquei. Ventava. As risadas soltas me lembravam de que há tempos eu não ria
assim, com vontade, sem motivos e sem consciência. Há tempos a minha alegria
fora trocada por um riso qualquer, o qual já não me compõe muito bem. Faz falta abstrair a dureza da realidade. Não convém sair da ilha e olhar de fora dela
quando a ilha é o único lugar onde se pode viver. O que salva essa experiência é
que, muito raramente e com muita sorte, não se é a única pessoa a sair da ilha.
Outro gole. E o que fechou meus olhos foi um cheiro que o vento trouxe, nem tão
de longe... Ela era dali, mas era também do mundo. O atraente abismo em seus
olhos me arrancou do chão. Ela era dona. Dona de um jeito incomum, dona de tudo
que lhe rodeava, dona de mim, dela e de quem me lê. Dona de uma força, vinda
não sei de onde, que só era solúvel no calor do meu peito, para a inveja de Deus.
Revivi aquelas danças, aqueles voos contrariados, uma, duas vezes. Ela sempre
quis amarras, mas eu também tinha asas. Quase iguais. Voamos sem saber pousar. Meu
pouso foi, por orgulho, solitário. Agora essas asas pesam nas minhas costas,
como se já não fossem parte de mim. A gente se dói por colocar o amanhã nas
mãos da vida, essa senhora passiva. A gente se ilude e se dói. “O que pesa nas
nossas costas nunca são as asas!” Me disse o mesmo bom amigo. E perguntou para
onde eu voaria, se pudesse. Ventava. Outro gole, que desceu lento... Ela era
dali. Raiz. De olhos fechados, ouvi sua voz, de tantas juras e indecências.
Creio que não foi conscientemente, mas ela brincou de ser outra. E era uma
brincadeira tão séria, que eu já não duvidava. Ganhei uma alegria rara. E medos.
O maior foi o de perdê-la. Não de vista, não para outro amor, mas perde-la para
sempre, nesta vida. Outro medo foi o de perder a mim mesma. Se em outras
paixões eu me descobria, nesta eu me questionava, me desconhecia, me doava como
quem ama pela última vez. A gente nunca se sabe por inteiro. Aos poucos, em seu
corpo santuário, eu pincelava de sofisticação os meus desejos mais crus. Ganhei
um impulso novo ao ver suas pupilas dilatarem quando ela disse, quase sem voz, que
me amava. Mal segurei aquele olhar! Ando temerosa com as palavras. Elas têm
esse poder de umedecer a alma e arranhá-la com a mesma facilidade. Meu bom
amigo me dizia que “nós amamos a ideia de amar, não o amor, de fato.” Mas se eu
não morrer de amor, não sei de quê mais... Ventava. Todos os olhares já estavam afogados
na cerveja, todas as minhas lembranças já não passavam disso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário