10 de outubro de 2016

Light

     Percebi que ela não era mais a mesma quando, com a leveza de uma folha caindo no chão, ela simulou o que seria o olhar fatal, aliado a uma igualmente fatal jogada de cabelos, de uma mulher de Áries, e em seguida riu da própria performance, a qual de fato me convenceu. Enquanto eu contava por onde havia andado todo esse tempo, com o cuidado de manter secretas as delícias das vivências secretas e as doloridas cicatrizes, ela me olhava como se lesse mil e um segredos que eu tinha. Também ela, me contou de seus inumeráveis casos, rupturas e planos deixados pra trás. Falou-me da simplicidade com a qual gostaria de viver o resto dos dias, da paz que falta nas pessoas e no mundo e na dor que isso pode causar. Assim, numa sensatez admirável. Desculpou-se pelas culpas que um dia me jogou por cima e confessou um desejo antigo de que eu me afogasse em copos de uísque, sofrendo por desamor, já que supostamente, eu havia escolhido não ser a mulher de sua vida. Desculpou-se rindo da “moça mal acostumada” que foi um dia, segundo ela própria. Eu já não era mais a causadora do caos, nem o último pensamento do dia, o que me deixava à vontade perto dela, mas ao mesmo tempo incomodava, ligeiramente, meu ego sagitariano. Ela estava mais atenta, mais cuidadosa nos gestos, mais proposital nas expressões. Também seus olhos haviam ganhado transparência, e no rosto um ar experiente substituíra os receios de não ter um manual pra vida. “O azul te cai melhor que aquele eterno preto.” Eu disse quando o silêncio tentou se instaurar entre nós. “Sempre muito polida nos elogios!” Me respondeu, fazendo pouco caso da minha tentativa inconsciente de cutucar sua vaidade. Sem muito pudor, ela testava minha libido, mal sabendo que, passados os anos e as paixões, eu me tornara perita em ler essas coisas, essas intenções. Contudo, ela ainda me desconcertava, mesmo que por motivos novos, os quais talvez eu não descubra. Enquanto a tarde corria, ganhei abraços saudosos, sem promessas ou amanhãs. Ela não era mais aquela moça mórbida que eu conhecera um dia. Com os cabelos sutilmente mechados, as unhas em tom de primavera e uma risada absolutamente livre de amarras, ela ganhava as ruas por onde caminhávamos. Dona de uma segurança e de uma leveza que a gente só adquire depois de ter sido um punhado de cacos de vidro espalhado no chão.

Sobr (a/e) a falta

  

     Ventava. Do alto, as luzes dos postes, dos carros e dos letreiros, tornavam a ponte gigantesca, e nem aquela cidade era a mesma cidade, nem aqueles amores eram mais meus. Sei lá quem lhes encarava o sorriso, os olhos. Sei lá quem, mais que eu, lhes invadia a vaidade. Ventava. De longe eu ganhava olhares úmidos de cerveja. Retribuí brindando com o ar e entornei o copo sem muita vontade. Um suspiro involuntário me fechou os olhos. Que falta faz um bom amigo por perto! Uma casa pequena, um desapego, um violão. Que falta faz o tempo que se joga fora. Queria tempo pra falar sobre aquelas onças brabas logo ali embaixo, no rio. Sobre não ter nascido onça e ser um dos vulneráveis de coração mastigado. Três vezes mastigado. “Não existe desculpa, a gente se deixa devorar por puro querer.” Me disse uma vez um bom amigo. Ventava. Lancei um olhar saudoso para o carro bordô que passou. Enchi meu copo e voltei a fechar os olhos... Mesmo não sendo dali, ela parecia dona do lugar. Lembrei do cheiro dos móveis velhos de madeira no apartamento, do porta-retratos na estante, do tecido finíssimo dos lençóis na minha pele nas manhãs de quarta, dos criados mudos cheios de livros marcados e rabiscados, dos cabelos curtos desgrenhados, dos seios marcados na  camisa, que lhe ficava enorme, desabotoada, à mesa, às 6:30. Lembrei sua fome e sua pressa. Seu café amargo e seu gozo fácil. “Somos a narrativa que quisermos, porque a verdade também é invenção nossa.” Eu jamais a acompanharia, fora daquelas noites. Ela sonhava por mim, ignorando a minha descrença, a minha risada. Quando ela fosse embora qualquer recaída emocional da minha parte haveria de ser meramente profissional. Sentiria falta de me deixar guiar, das melhores músicas e leituras da minha vida, mas meu lugar era ali. Orgulhosa e otimista, ela foi e eu fiquei. Ventava. As risadas soltas me lembravam de que há tempos eu não ria assim, com vontade, sem motivos e sem consciência. Há tempos a minha alegria fora trocada por um riso qualquer, o qual já não me compõe muito bem. Faz falta abstrair a dureza da realidade. Não convém sair da ilha e olhar de fora dela quando a ilha é o único lugar onde se pode viver. O que salva essa experiência é que, muito raramente e com muita sorte, não se é a única pessoa a sair da ilha. Outro gole. E o que fechou meus olhos foi um cheiro que o vento trouxe, nem tão de longe... Ela era dali, mas era também do mundo. O atraente abismo em seus olhos me arrancou do chão. Ela era dona. Dona de um jeito incomum, dona de tudo que lhe rodeava, dona de mim, dela e de quem me lê. Dona de uma força, vinda não sei de onde, que só era solúvel no calor do meu peito, para a inveja de Deus. Revivi aquelas danças, aqueles voos contrariados, uma, duas vezes. Ela sempre quis amarras, mas eu também tinha asas. Quase iguais. Voamos sem saber pousar. Meu pouso foi, por orgulho, solitário. Agora essas asas pesam nas minhas costas, como se já não fossem parte de mim. A gente se dói por colocar o amanhã nas mãos da vida, essa senhora passiva. A gente se ilude e se dói. “O que pesa nas nossas costas nunca são as asas!” Me disse o mesmo bom amigo. E perguntou para onde eu voaria, se pudesse. Ventava. Outro gole, que desceu lento... Ela era dali. Raiz. De olhos fechados, ouvi sua voz, de tantas juras e indecências. Creio que não foi conscientemente, mas ela brincou de ser outra. E era uma brincadeira tão séria, que eu já não duvidava. Ganhei uma alegria rara. E medos. O maior foi o de perdê-la. Não de vista, não para outro amor, mas perde-la para sempre, nesta vida. Outro medo foi o de perder a mim mesma. Se em outras paixões eu me descobria, nesta eu me questionava, me desconhecia, me doava como quem ama pela última vez. A gente nunca se sabe por inteiro. Aos poucos, em seu corpo santuário, eu pincelava de sofisticação os meus desejos mais crus. Ganhei um impulso novo ao ver suas pupilas dilatarem quando ela disse, quase sem voz, que me amava. Mal segurei aquele olhar! Ando temerosa com as palavras. Elas têm esse poder de umedecer a alma e arranhá-la com a mesma facilidade. Meu bom amigo me dizia que “nós amamos a ideia de amar, não o amor, de fato.” Mas se eu não morrer de amor, não sei de quê mais...  Ventava. Todos os olhares já estavam afogados na cerveja, todas as minhas lembranças já não passavam disso. 

Lua nova

    
      Não é de hoje que inunda meus ouvidos o som das ondas baixas que branqueavam o negrume das águas e lambiam as minúsculas pedras de areia na beira da praia. Não é de hoje que essa lembrança pede pra ser poesia fora de mim, e eu, com medo de gastar o arrepio que sinto toda vez que me chega, resisto em contá-la. O céu estava tomado de estrelas inacreditáveis. O vento, a meu favor, tirava o vestido dela pra dançar. E eu, que antes não me valia de aventuras extremas, sentia o coração aos pulos de excitação a cada murmúrio de gente que ouvia ao longe. Caminhamos abraçadas, sem falar muita coisa, depois de esgotarmos os diálogos na noite anterior, depois de termos rasgado os acordos em prol da saudade e perdido a noção da hora.
    Sentei num muro qualquer de uma casa sem luzes, rocei os pés na areia, forçando-os contra ela. Sempre gostei da dor em suas doses homeopáticas. Meus braços abraçavam sua cintura, eu era alguém que namora na rua a primeira namorada, mesmo depois de tantas namoradas. Minha boca trepidava na altura dos seios eriçados e, pouco depois, desnudos. Eu era poeta, e ela poesia materializada em minhas mãos.  Era tanto céu, tanta brisa e tanta onda barulhenta, que não posso saber o momento em que fomos parar no chão. 
     Lembro de abrir os olhos e tê-la sobre mim, e sobre nós o céu. Era tanta vida nela que se a razão me coubesse eu teria medo. Mas a vida nela era também um pouco de vida em mim. Não me cabiam as fugas, tampouco me rondavam os medos. Eu era plena, como o instante dos amantes, que nada antecipa senão o próprio e inevitável amor. Ela sorria, porque sempre sorri como quem guarda o segredo do universo sem pretensão de entrega-lo. Lembro-me do jeito impossível que ela tinha de calar sem desviar os olhos, como se o olhar, ao entregar seus pensamentos, bastasse. E, por muito tempo, bastaram a mim aqueles olhos úmidos, de quem nunca precisou se proteger, de quem jamais partiria. Ela sempre ficava. E me afogava em seus líquidos, tantos... Que às vezes eu me esquecia de respirar. Não sei se por saudade, por uma sede que não sacio, ou por todas aquelas estrelas testemunhas, minha camisa branca ainda guarda o cheiro da areia.