25 de agosto de 2017

Compás

    Eu quero o que me foge, o que não me vê e não tem intenções de ser nada. O ar perdido que ela tem quando passa. Sabe deus em quais mundos vagueia! Sei que nas madrugadas, vez ou outra, ela é intrusa na minha imaginação. Quase um tormento! Os lábios rijos desenhando confissões fogosas, fora de contexto e de razão. Eu quero o incêndio que suponho! E esses dentes alinhados. Ah, quisera-os arrastando-se em meus ombros, na tentativa de conter um desejo impetuoso que queira sair pela garganta. Que diabos, essa pinta! Essa pinta que não me deixa escolha, pois paixão não tive que não possuísse uma pinta bonita rondando a boca. Paixão, que nada! Mas ela aguça em mim qualquer fantasia absurda. Ela passa e eu lembro das mulheres de Vinicius. Ela passa e o meu corpo, mal tratado por sentimentos de outros invernos, tem ganas de ser, puramente, instinto. Nada mais. Nada quero dessa fragilidade de pássaro novo que ela esconde nos anos e na firmeza dos passos ligeiros. Sempre ligeiros. Levam-me por diante, sem delicadeza, sem permitir que eu lhe roube detalhes. Nenhuma poesia me vem, senão simplórias exaltações. ¡Qué mujer, mira! Ela passa como ventania. Balançando, sem querer, os cabelos escuros e fartos, soltos como ondas noturnas. Ela passa sem saber que eu quero, dentro dos meus, os olhos dela, demoradamente. Dispersos. Esses olhos dispersos que em nada pousam por mais de um minuto. Quero-os, tomara que por capricho! E que ela não saiba! Que não leia nunca a intenção atrevida de provocar, com as pontas dos dedos, seu sorriso raro. Que morra em minha boca essa ânsia de resvalar os lábios pelo breve espaço entre o pescoço e a nuca, que ela jamais expõe, para curiosidade máxima da minha cobiça. Que eu afaste da cabeça a ideia, que minha não pode ser, de nos braços tomar seu corpo, ritmado por tambores e guitarras, pelas vozes desses cantantes. Que eu naufrague o devaneio de ter, entre as suas, minhas coxas, e nas mãos o calor de seu sexo úmido. Antes o inferno que este gozo! Nada quero desses lugares por onde ela andou, dos sabores que lhe chegaram à boca ou dos cheiros que eriçaram seus pelos. E, ainda que eu minta sobre quase tudo, nada quero que não seja descobrir como ela sente, como se entrega, como se desarma e se derrama. Não tenho pretensão alguma, senão descobrir se ela começa por sinestesia, uma dança, uma frase qualquer roçando a orelha, ou se estraga os botões da camisa, vontades impacientes e pernas trêmulas. Ah, mas antes me assombrassem saudades antigas! Ela passa e eu a expulso, nua, do meu pensamento.

Jaguarão, manhã de mês frio

    Na praça, por solidão ou lazer, os velhos ainda dão de comer aos pássaros. O cais faz silêncio eterno, até um barco cheio de areia cortar as águas do rio. As flores das árvores passeiam rua afora e eu ainda gasto algumas horas nesses cenários, onde as linhas da fronteira desbotam. Se eu aprendi algo nesse tempo de tua ausência foi a olhar melhor, reparando mais, me deixando estar. Senti falta dos teus assuntos, das tuas vivências, da tua conversa que se encontrava com a minha, como velhas conhecidas. Apesar do tempo e de tantas mudanças em mim, tu ainda és aquela que tinha a atenção dos meus olhos admirados. Como dizem, algumas coisas permanecem. Os teus cachecóis, escolhidos com pouco cuidado, as tuas mãos escondidas nos bolsos das calças, os teus gestos incontidos, o teu jeito de contagiar o espaço que te cerca. Eu tenho tanto pra te falar, e nem sei por quais esquinas começo! Como sabes, pelas bocas alheias, abri mão das minhas certezas e lancei um barco de velas esburacadas em mares traiçoeiros. Afoguei-me brutalmente, não sei ainda se por opção ou falta de tato. Tempestades violentas demais pra alguém de vinte e poucos. Tempestades que previas por tua estrada. É mais bonito nos livros, mas ou a gente vive, ou a gente escreve, não é mesmo? O que não sabes se eu não te conto, é que nada de mais valia levarei desses tempos turvos que as manhãs em que o sol beijava minha pele salgada, amansando a fúria que eu quis derramar em versos. Depois das tuas, ambicionei outras mãos. Também outras risadas alegraram meus ouvidos e outros olhos foram ganhando os meus. Uns, pelo ardor que causavam, outros pela paz que prometiam. Aliás, foram muitas promessas! Algumas cumpridas, outras quebradas e umas que ainda se insinuam quando as saudades se deixam morrer. Inúmeras vezes lamentei tua falta. Quis a liberdade que nos dávamos, as asas que me emprestavas quando as minhas ainda não haviam nascido. Também os teus desejos seguros e apressados. Quis dormir contigo de novo, e cansar teu corpo de novo, no único momento em que me davas as rédeas de um momento ao teu lado. Sem a face violenta da paixão. Estive de mãos atadas frente a intensidade do que meu peito sentiu. Eu que pensava ter o controle das coisas, por tantas leituras, sentimentos, teias e tramas bem tecidas pelo caminho, me vi menina de novo. Aquelas certezas tolas, a leveza, o pulsar inconsequente de quem quer a vida, em suas tantas faces, vibrando na pele, o riso descomplicado, tudo foi me deixando, aos poucos. Deixei de adorar os riscos, passei a ponderar as permissões. E assim aumenta, assombrosamente, a distância entre a moça dos olhos de campo que conhecestes e essa a quem miras com saudade, alegria, mistério. Senti falta da paz das horas contigo, enquanto as horas me maltratavam por aqui. Porém, que posso te dizer além de que, mais uma vez, tu tinhas razão? Somos mesmo esse correr dos dias, essas águas sempre novas do rio. Somos esses errantes buscando transcender a mesmice da vida. O impulso vivo, apesar do cansaço das paixões. Somos a vontade, no fundo do peito, de ser um barco lançado ao mar, mesmo que não cheguemos à paz de um dia, velhos e despreocupados, sentarmos no banco da praça e oferecer migalhas de pão aos pássaros.