Tu és saudade e eu sou vaidade,
me dizia, no último encontro. E dizia da pior maneira, recordo: sem nenhuma
palavra. A vaidade dela queimando meus poros, com aquela malícia felina que lhe
foi dada na adolescência. Sim, na adolescência, porque sinto que a conheço
desde que ela era a guria moura atirada entre os bichos de pelúcia, com as covinhas
do sorriso mais acentuadas que nunca e o sorriso mais travesso que nunca e os
segredos mais escondidos que nunca e os sonhos mais bonitos que os de hoje.
Sinto, também, que a quis a vida toda, desde que eu era a guria que fugia pros
matos, que saía pra chuva chutando barro nos guris da vila, louca por tudo que
não podia fazer, teimosa e quase livre, salvo o coração que sempre me pôs de
joelhos.
Acontece que nos encontramos
tarde. Da primeira vez eu não a vi, e todo mundo viu, todo mundo comentou, todo
mundo quis. Mas meus olhos estavam em paz, até ela decidir, inconscientemente,
que paz demais deve ser violada. Ela violentou minha paz e eu deixei, uma vez,
duas vezes... Nas outras vezes fui eu mesma quem pediu. Ela era a chuva
proibida pela mãe, ela era o cheiro tentador que o mato tem. Passou por mim
feito um vento e arrastou meus olhos com ela, pelos cabelos dela, pelas costas
dela que contrastavam uma renda branca, pelo quadril latino dela, pelas pernas
ligeiras dela, pelo ar petulante e empinado dela. Mas isso todo mundo já leu,
embora ninguém tenha entendido a importância da repetição. Repito pra ver se esqueço,
pra gastar a sensação de ser levada, por vontade, vida a fora. Ela ainda era
somente uma presença muda, uma sedutora presença muda, até que riu. Mesmo
ambiente, uma jogada de cabelos, um olhar disfarçado de acaso e uma risada...
Uma risada audaz que eu quis ouvir centenas de vezes, e ouvi, de fato. Ouvi e entendi
aquele cantor que dizia que gente apaixonada faz um hino do som da risada da
pessoa, ou algo assim. Eu fiz três canções diferentes com a risada dela: uma,
tinha dedilhados de violão em uma manhã comum com café fresco; outra, tinha o
ritmo marcado de um tango em noites ardentes de Buenos Aires; e a última,
possuía a melancolia do adeus de uma música clássica.
Depois do riso, os olhos dela (os
quais repito mais que tudo) decidiram caçar-me, em um jogo perigoso à margem do
resto do mundo. Mal sobrevivi. Até ouvi boatos de que outras presas souberam
jogar, mas eu... Eu idolatrei aqueles olhos e jurei me vestir de todas as
presas possíveis para poder tê-los postos em mim nas madrugadas de uma
infinitude. Cometi todos os exageros pensando naqueles olhos, amei-os tanto que
quis arrancá-los, como a mais trágica literatura faria. Eram olhos
impenetráveis, cheios de armadilhas... Feitos de labaredas para queimar o verde
dos meus olhos de mato, especialmente quando olhavam debaixo para cima,
maravilhosamente quando ensopados de penumbra, tão nus quanto o corpo rijo.
Eu a segui pela rua, num impulso.
Pelo menos cem batimentos por minuto, mãos suadas, garganta seca. Não lembro o
que disse, mas ela riu. Caminhamos juntas, paramos na esquina, e como eu quis
que as luzes da rua se apagassem! Se a cena se repetisse hoje, eu saberia que
as sensações que senti não devem, em hipótese alguma, ter seguimento, mas
também não podem ser paradas, e disso eu desconfiei antes mesmo de tocá-la,
afirmando a desconfiança em um abraço. Foi melhor assim, um mergulho insano na
vontade incontrolável de tocá-la.
Ela me seguiu, por causa de um
beijo mal roubado. Adverti sobre o risco de uma paixão. Adverti rindo, olhando
pra baixo, como quem pressente, como quem diz “Olha aqui, tu vais me
enlouquecer a vida!”
A gente até parecia cena de
filme, pintura de tela, letra de música... Não a culpo por não poder tatear
nossa história, porém, queria que ela me parecesse menos real também.
“Te amando”, respondeu a uma
pergunta qualquer que fiz, deitando meu corpo com o dela e calando minhas
próximas perguntas. Tinha um gosto de paixão, um cheiro de paixão, um
devoramento de paixão, uma exaustão de paixão. E paixão me servia - de pratos
cheios e taças fartas de um líquido delicioso - mas comecei a suspeitar que a
falta da presença dela nos meus dias pudesse ser mais que “paixão”. Eu podia conversar
com ela por horas ininterruptas, em duas ou mais línguas, sobre decoração de
ambientes, sobre como animais de estimação são importantes para os filhos, sobre
as doenças psicológicas que afetam a humanidade, sobre a educação no país,
sobre religiões pagãs, sobre o caos, sobre o amor... Ah! Eu podia ficar em
silêncio com ela, me demorando no contraste de nossas cores, na dança de nossas
mãos, no frenesi de nossas ganas. Eu podia dormir com ela, e tantas vezes, meu
deus, tantas vezes senti falta de somente dormir com ela, de vê-la dormir, de
ouvi-la dormir! Eu... que tentei convencê-la de que adormecer com alguém gera a
dependência das almas, eu que estava indo tão bem na minha aventura poética!
Tanto equívoco! Tanto de mim, sem saber quanto dela era alma, corpo,
sentimento. Mas que tolice! Adormeci em camas nas quais minha alma sequer
demorou-se!
Algumas vezes eu fui embora
pensando em voltar de uma vez para aqueles beijos, para os sussurros, para o
entendimento dos corpos. Outras vezes, fui embora querendo ouvir mais da voz,
querendo mais das histórias que me contava, dos resultados das histórias, que
andavam pela casa com caras de sono, de brincadeiras, de curiosidade, de “a gente
gostou de ti, fica mais”. Suspeito que ela nunca entenda, mas me apresentou
mundos novos e complexos com os quais o meu mundo, sem hesitações, quis se
fundir. Além da pulsação de nosso encontro atrasado e inevitável, ela deixou-me
entrar (pela janela), cuidar, gargalhar, vestir, pentear, ouvir, sentir, morrer,
suspirar, ser... Algumas das minhas recordações mais ternas têm cheiro de
cabelos frutais e gosto de leite com chocolate.
Alguém me explica como é que a
gente vai embora sem olhar pra trás? Como é que a gente fica perto sem precisar
mascarar uma saudade imensa? Como é que a gente levanta depois que o temporal
passa? Ainda mais essa gente metida a poeta, com a tremenda aptidão para os
dramas e excessos de sensibilidade. Ainda mais eu, que transcendia, sem
permissões, sem ter decorado o caminho de volta, com asas frágeis que sonhavam
o céu inteiro.
Ah, esse destino clandestino que
eu contrario! Nunca consegui ir embora sem que alguma coisa minha ficasse. A
sorte é que o tempo ainda sabe transformar os quereres, em poesia, que seja.
“Eu não quero o teu corpo
Eu não quero a tua alma,
Eu deixarei intato o teu ser a
tua pessoa inviolável
Eu quero apenas uma parte neste
prazer
A parte que não te pertence.”
- Joaquim Cardoso