13 de janeiro de 2014

Revoo


    Tu és saudade e eu sou vaidade, me dizia, no último encontro. E dizia da pior maneira, recordo: sem nenhuma palavra. A vaidade dela queimando meus poros, com aquela malícia felina que lhe foi dada na adolescência. Sim, na adolescência, porque sinto que a conheço desde que ela era a guria moura atirada entre os bichos de pelúcia, com as covinhas do sorriso mais acentuadas que nunca e o sorriso mais travesso que nunca e os segredos mais escondidos que nunca e os sonhos mais bonitos que os de hoje. Sinto, também, que a quis a vida toda, desde que eu era a guria que fugia pros matos, que saía pra chuva chutando barro nos guris da vila, louca por tudo que não podia fazer, teimosa e quase livre, salvo o coração que sempre me pôs de joelhos. 
    Acontece que nos encontramos tarde. Da primeira vez eu não a vi, e todo mundo viu, todo mundo comentou, todo mundo quis. Mas meus olhos estavam em paz, até ela decidir, inconscientemente, que paz demais deve ser violada. Ela violentou minha paz e eu deixei, uma vez, duas vezes... Nas outras vezes fui eu mesma quem pediu. Ela era a chuva proibida pela mãe, ela era o cheiro tentador que o mato tem. Passou por mim feito um vento e arrastou meus olhos com ela, pelos cabelos dela, pelas costas dela que contrastavam uma renda branca, pelo quadril latino dela, pelas pernas ligeiras dela, pelo ar petulante e empinado dela. Mas isso todo mundo já leu, embora ninguém tenha entendido a importância da repetição. Repito pra ver se esqueço, pra gastar a sensação de ser levada, por vontade, vida a fora. Ela ainda era somente uma presença muda, uma sedutora presença muda, até que riu. Mesmo ambiente, uma jogada de cabelos, um olhar disfarçado de acaso e uma risada... Uma risada audaz que eu quis ouvir centenas de vezes, e ouvi, de fato. Ouvi e entendi aquele cantor que dizia que gente apaixonada faz um hino do som da risada da pessoa, ou algo assim. Eu fiz três canções diferentes com a risada dela: uma, tinha dedilhados de violão em uma manhã comum com café fresco; outra, tinha o ritmo marcado de um tango em noites ardentes de Buenos Aires; e a última, possuía a melancolia do adeus de uma música clássica.
    Depois do riso, os olhos dela (os quais repito mais que tudo) decidiram caçar-me, em um jogo perigoso à margem do resto do mundo. Mal sobrevivi. Até ouvi boatos de que outras presas souberam jogar, mas eu... Eu idolatrei aqueles olhos e jurei me vestir de todas as presas possíveis para poder tê-los postos em mim nas madrugadas de uma infinitude. Cometi todos os exageros pensando naqueles olhos, amei-os tanto que quis arrancá-los, como a mais trágica literatura faria. Eram olhos impenetráveis, cheios de armadilhas... Feitos de labaredas para queimar o verde dos meus olhos de mato, especialmente quando olhavam debaixo para cima, maravilhosamente quando ensopados de penumbra, tão nus quanto o corpo rijo.
    Eu a segui pela rua, num impulso. Pelo menos cem batimentos por minuto, mãos suadas, garganta seca. Não lembro o que disse, mas ela riu. Caminhamos juntas, paramos na esquina, e como eu quis que as luzes da rua se apagassem! Se a cena se repetisse hoje, eu saberia que as sensações que senti não devem, em hipótese alguma, ter seguimento, mas também não podem ser paradas, e disso eu desconfiei antes mesmo de tocá-la, afirmando a desconfiança em um abraço. Foi melhor assim, um mergulho insano na vontade incontrolável de tocá-la.
Ela me seguiu, por causa de um beijo mal roubado. Adverti sobre o risco de uma paixão. Adverti rindo, olhando pra baixo, como quem pressente, como quem diz “Olha aqui, tu vais me enlouquecer a vida!”
A gente até parecia cena de filme, pintura de tela, letra de música... Não a culpo por não poder tatear nossa história, porém, queria que ela me parecesse menos real também.
    “Te amando”, respondeu a uma pergunta qualquer que fiz, deitando meu corpo com o dela e calando minhas próximas perguntas. Tinha um gosto de paixão, um cheiro de paixão, um devoramento de paixão, uma exaustão de paixão. E paixão me servia - de pratos cheios e taças fartas de um líquido delicioso - mas comecei a suspeitar que a falta da presença dela nos meus dias pudesse ser mais que “paixão”. Eu podia conversar com ela por horas ininterruptas, em duas ou mais línguas, sobre decoração de ambientes, sobre como animais de estimação são importantes para os filhos, sobre as doenças psicológicas que afetam a humanidade, sobre a educação no país, sobre religiões pagãs, sobre o caos, sobre o amor... Ah! Eu podia ficar em silêncio com ela, me demorando no contraste de nossas cores, na dança de nossas mãos, no frenesi de nossas ganas. Eu podia dormir com ela, e tantas vezes, meu deus, tantas vezes senti falta de somente dormir com ela, de vê-la dormir, de ouvi-la dormir! Eu... que tentei convencê-la de que adormecer com alguém gera a dependência das almas, eu que estava indo tão bem na minha aventura poética! Tanto equívoco! Tanto de mim, sem saber quanto dela era alma, corpo, sentimento. Mas que tolice! Adormeci em camas nas quais minha alma sequer demorou-se!
    Algumas vezes eu fui embora pensando em voltar de uma vez para aqueles beijos, para os sussurros, para o entendimento dos corpos. Outras vezes, fui embora querendo ouvir mais da voz, querendo mais das histórias que me contava, dos resultados das histórias, que andavam pela casa com caras de sono, de brincadeiras, de curiosidade, de “a gente gostou de ti, fica mais”. Suspeito que ela nunca entenda, mas me apresentou mundos novos e complexos com os quais o meu mundo, sem hesitações, quis se fundir. Além da pulsação de nosso encontro atrasado e inevitável, ela deixou-me entrar (pela janela), cuidar, gargalhar, vestir, pentear, ouvir, sentir, morrer, suspirar, ser... Algumas das minhas recordações mais ternas têm cheiro de cabelos frutais e gosto de leite com chocolate.
    Alguém me explica como é que a gente vai embora sem olhar pra trás? Como é que a gente fica perto sem precisar mascarar uma saudade imensa? Como é que a gente levanta depois que o temporal passa? Ainda mais essa gente metida a poeta, com a tremenda aptidão para os dramas e excessos de sensibilidade. Ainda mais eu, que transcendia, sem permissões, sem ter decorado o caminho de volta, com asas frágeis que sonhavam o céu inteiro.  
    Ah, esse destino clandestino que eu contrario! Nunca consegui ir embora sem que alguma coisa minha ficasse. A sorte é que o tempo ainda sabe transformar os quereres, em poesia, que seja.


“Eu não quero o teu corpo
Eu não quero a tua alma,
Eu deixarei intato o teu ser a tua pessoa inviolável
Eu quero apenas uma parte neste prazer
A parte que não te pertence.”


- Joaquim Cardoso

8 de janeiro de 2014

O corpo sempre foge querendo ficar


    Signos de fogo querendo ser incêndio.
    Meus olhos escalaram suas pernas. Saltitaram no azul da
barra do vestido, demoraram na saliência do quadril, dos seios e por um triz não triscaram na curva entre o pescoço e a boca. A boca contendo um riso vaidoso, guardado para outro momento. Incêndio adiado. Ela desafiava os quatro elementos.

    Enquanto fazia rodeios numa espécie de ritual, com os pés descalços pelo chão de madeira da sala, onde eu estava; a música que ela ouvia já me invadira sem piedade, como a fúria do mar que desconheço. E assim, pensando no mar, tive uma leve sensação de afogamento, uma lembrança de alguma onda que levou meus passos e me jogou contra as pedras, lanhando minhas costas. 
“Filhas da deusa vem de águas que passarinho não bebe, menina!” Pressentia ela, como se pudesse ler minhas lembranças, ou as desatenções tão previsíveis disso que eu era, pelo menos nas horas fantasiosas em que ela pedia que eu fosse: uma menina.
“Bebes?” E ria, num deboche afogueado, andando pelo corredor, os cabelos mal prendidos, a nuca despida, os ombros também, o tecido azul balanceando na cintura solta, um passo, outro... 
    
    Deixou-me a sós. Com os violinos e percussões, com a voz daquele homem sussurrando vontades impróprias nos meus ouvidos. O cantor meio homem meio lagarto, com olhos de lagarto, movimentos de lagarto... O ladrão da música que não fiz, cantando as minhas saudades, tão bem metamorfoseadas em esquecimento que eu já começara a acreditar. Morri de sede na imensidão desértica daquela letra e a melodia me matava de um desejo que não sabia decidir entre as ondas violentas que me faltavam, e os desertos antigos de areias sorrateiras, prestes a, também, me afogar.
Que próximos estarão os abismos quando a arte deixa de ser deleite para arranhar a realidade sem nenhuma sutileza...

    Caia a noite. A luz restante adentrava as janelas e refletia nas pernas dela, que luziam lisas e convidativas esticadas no sofá. Depois de me levar dos meus devaneios para seus mundos de amantes sem nome, juntou-se aos violinos e aos meus abismos. Ouvia-me com os olhos, falava-me com os olhos, só não sorria com os olhos... Talvez soubesse amar com eles.
Repentinamente, não sei se contra minha vontade ou a favor do apreço que tenho pelos riscos, fui atraída por outros olhos. Lembrei como estes, endiabrados, souberam sorrir e amar e enlouquecer e assombrar. Lembrei da minha falta de garbo ao render-me àqueles olhares. Presa fácil, entregue, imersa. Concluí, ali, que alguns olhos não deixam escolha. Metem-se nas entranhas, queimando e extaseando os sentidos arrebatadoramente.
Voltei de meus assombros quando a mão dela, exata e quente, tocou meu braço. Voltei para as suas saliências e para os rumos libertinos pelos quais o homem lagarto e o cair da noite nos guiavam.
Não sei como se tece o desejo, mas ele parece uma teia simétrica da qual não se consegue sair. E que urgência causa!


    Ainda não recordo que movimento - talvez aprendido com o réptil que nos espionava - arrastou seu corpo para tão junto do meu. Uma pausa bruta no nosso assunto que já tinha tão pouco de linguagem verbal. Não tínhamos mais roupas. O vestido deixara o corpo dela como um banho de mar ao contrário. Soltei-lhe os cabelos, ora claros, ora negros. Foram beijos esganados invadindo as bocas e sorvendo os sexos, mãos cobiçosas no calor das coxas e ânsias tremulantes nos ouvidos. 
Rompidas as balizas, o que resta ao desejo? Riam os lábios vaidosos dela, riam os meus lábios confusos. Cantava, ainda, o lagarto. Tanta água em seus desertos!